domingo, 18 de abril de 2010

Lembranças de chuva


Era um pouco mais da meia noite e a chuva caía torrencial naquele domingo que amanhecera tão quente. Tanta chuva lá fora, pensava, e eu dentro do quarto, ora a entreter-me com a leitura de poemas líricos, ora sendo atrapalhado pelos pingos de chuva que caíam fortes. Sem mesmo esperar, fui invadido por uma vontade de tomar banho na chuva que não cessava e me convidava a banhar em suas águas caudalosas. Não hesitei e incontinenti fui à rua com tal fim.

Como a água caía enérgica! Lavava a minha linda, imensa pequena cidade. Atravessei a rua já quase veneziana. Debaixo das biqueiras me pus a pular; é, lembrei de quando eu era pequeno, digo, de quando eu era menor – ou criança – nunca fui tão grande mesmo, eu sempre pulava na chuva, então foi impossível não entrar no trem veloz das lembranças que me levou à infância. Pulava, corria e brincava nessa mesma rua quase intacta durante todos esses anos. Fui andando nas calçadas e relembrado de tudo – ou quase tudo, minha mente gosta de esquecer algumas coisas, muitas coisas na verdade, – percebi casas que jamais alteraram a sua arquitetura, vi casas que se ergueram totalmente diferentes das que existiam antes, casas modeladas ou não, nada me impediu de voltar à tenra infância, infância feliz testemunhada por aquelas mesmas casas enraizadas para sempre na memória de minha vida e no chão caloroso da minha terra. Lembrei da queda na calçada alta de Dona Maria, a calçada já não me era tão alta e Dona Maria já se fora há tanto tempo! Lembrei da pedra, que era para não estar no meio do caminho, e não estava, mas que acertou em cheio a minha cabeça enquanto brincávamos, minha turma e eu, engenhosamente, de cabanas de escoteiro embaixo da janela intocável do Seu João que fazia questão de não alterar em nada a aparência da casa que um dia fora do seu pai. Fui à biqueira de Seu Gonzaga, a melhor da rua, a água caía macia, macia... Estava do mesmo jeito que antes! Cheguei a ouvir minha mãe mandando meus irmãos e eu tomarmos banho de chuva do lado de lá da rua porque “...do lado de lá não tem fios e com essa tempestade dá medo cair algum”. Que doce tempo! Fui andando até a esquina nessas reflexões saudosas do gênesis da minha vida, saudade de um tempo que plantou em mim o que hoje sou, de um tempo que o próprio tempo se encarregou de sucumbir. Infelizmente. A infância dá saudade, talvez pelo descompromisso, talvez pela liberdade, mas certo é que dá saudade.

Decidi voltar, quando olhei para a rua, contemplei uma cena linda: os pingos de chuva, que continuava reinando, caíam brilhantes, como se tivessem luz própria, as luzes que cercavam aquele horizonte davam uma cor rosada à cidade e, em contraste com a cor da noite pintavam em minha visão uma obra linda que, por maior talento que eu pudesse ter jamais conseguiria transmitir pra uma tela, ímpar beleza. A chuva tinha me presenteado aquela visão magnífica.

Depois de muitos minutos dando espaço a lembranças pueris sob a chuva rígida, entrei em casa, não sem antes me secar ainda na área. Mamãe tinha raiva quando entrávamos molhados da chuva dentro de casa. “Vai molhar toda a casa!”, repreendia rapidamente. Entrei no quarto e vi o livro que ainda não terminara de ler. As poesias ficarão para outra hora, pensei, porque agora quero e vou registrar minhas lembranças gostosas, saudosas, formosas, bondosas. Elas me deram vigor para a semana que se inicia, que chuva boa! Que boa noite a chuva trouxe! Que boas lembranças me trouxe a chuva!Enquanto escrevia, chovia e foi assim toda a madrugada.

Peterson Nogueira

28Mar05

domingo, 4 de abril de 2010

Gritos silenciosos


Olhando assim, parecia que a vida tinha sentido, embora ele não quisesse procurar o sentido, embora ele não quisesse ser sentido, nem sentir. O lenimento de suas forças era brusco. Há forças nos sumidouros e nem um pouco na consciência. Algumas poucas e minguadas lágrimas obedeciam à gravidade. E ele (sempre o desconcertante ele implodido) estava lá, enxugando-as. Um furacão sentimental explodia no insensível criado pela pós-modernidade. A explosão era abafada, inaudível. Gostaria de não saber das mazelas, dos cânceres, dos internamentos, dos médicos, nem de santos, nem de anjos.

Não saberia se despedir. Não gostaria de saber. Ia àquele ato tão familiar. Longe, distante, frio. Caçaria palavras para descrever suas sensações. Misteriosas. Augusto dos Anjos não saberia descrever o corpo em decúbito corroído por algum mal. Falavam em siglas. Deletérios sem fim. Um dia de sol. Ninguém lembrava a chuva matinal. O sol ousou e venceu o dia de São José. As pessoas enegrecidas circulavam-no involuntariamente. Sufocado, jogou os amores-perfeitos e procurou ar.

Algo bom desmistificaria o termo. Egípcios, cristãos, espíritas, compositores. Autores. Esperava por uma resposta. Do tempo. Ou do próprio fim. Vagueava pela necrópole e visitava residências de moradores anônimos. Ou apenas nomeados. Datados. Imaginava situações lúgubres. Queria mesmo era saber como foram parar ali. E onde estavam. Como estavam. Cresceu entre aqueles arquitetônicos espaços mínimos para deitar eternamente o bem e o mal.

Lembrava e ria. Ruborizava-se. Colerizava-se. Enfraquecia-se. Perdia o sentido oferecido pela vida. Tomado pela vida. Não conseguia não evadir-se da realidade. Esquecia e chorava.

Alguém o chamou para últimas palavras. Fez um discurso falso. Esqueceu-se propositadamente das Letras. Sentiu-se carpideira lesada pela falta de pagamento. Ouviu longe os aplausos que desferiam a morte com salves, vivas e outras entonações entusiasmadas. Todas hipócritas. Voltou o olhar para o horizonte de cruzes, mármores, anjos, santos e esquecimentos. E pessoas caminhando por espaços mal projetados, esgueirando-se pela vida. Escapou de alguns conhecidos desconhecidos, sentou-se num Carrara de um imberbe. Olhou-o profundamente, como quem conhecesse e sentisse falta. Sentiu-se carranca sempre de ótimo humor. O gosto de não ser sozinho durou pouco. E ali chorou a dor de sepultar o amor que tinha.

Peterson Nogueira

1º de abril de 2010

Uma mentira histórico-literária

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