sexta-feira, 17 de junho de 2011

Natal, 17 de junho de 2011.

Senhor vereador Heráclito Noé,

Com interesse, li hoje uma notícia no jornal e tomei conhecimento de um projeto de sua autoria acerca dos inúmeros estrangeirismos que se propagam pela cidade Natal, e o seu empenho em tornar obrigatória a tradução dessas palavras, com o nosso vernáculo à mostra.

Impossível não lembrar, nesse momento, do nostálgico, melódico e lindo soneto do parnasiano Olavo Bilac, demonstrando todo amor e apego à Última Flor do Lácio inculta e bela. No entanto, é impossível não lembrar também do frustrado projeto quase gêmeo ao seu – nasceram de placentas diferentes –, do deputado Aldo Rebelo, em 2007.

Entendido que o senhor se preocupa com o nosso idioma, saiba que a língua portuguesa passa incólume em todas as instâncias de um suposto desaparecimento: ela é viva e como tal se faz funcionar na maioria das circunstâncias que se fazem necessárias – haja vista que a nossa educação, infelizmente, não faz exportar tantas descobertas, tanta tecnologia e tantas coisas mais que, mesmo o senhor sente necessidade. Legislar sobre a língua seria algo parecido com uma hipotética legislação do próprio pensamento: não se consegue; ambos são vivos e carecem de interação com o mundo. A língua portuguesa – ou quaisquer outras – jamais atingiu um estado de “pureza”, isso seria impossível. Principalmente nesse estado contemporâneo no qual vivemos, cujas tecnologias incluem a própria condição vital (e virtual) para fazermos jus ao fator social.

Logo, numa rápida constatação do seu projeto, pode-se verificar que há arbitrariedade em vários aspectos:

  • Sociolinguísticos: sobre uma língua viva não se legisla (mas há a possibilidade de fazê-lo funcionar se se tomar como aporte o latim).
  • Psicolinguísticos; há na essência de seu projeto um cunho cerceador na escolha lexical do nativo brasileiro, dos empresários e dos próprios falantes.
  • Filológicos; a língua também evolui com o acréscimo de outros vocábulos ao seu próprio; o senhor pode, inclusive, constatar que o dicionário Houaiss já traz, por exemplo, a palavra “mouse” como parte do nosso léxico.

Em palestra brilhante, proferida no ano 2000 pelo acadêmico Domício Proença Filho, o brilho das palavras deste faz encandear o discurso do projeto do senhor:

Estrangeirismos sempre estiveram presentes, com maior ou menor volume, na língua portuguesa, como elementos enriquecedores, emergentes do convívio Cultural dos povos. Palavras e expressões imigrantes decorrem dos rumos do progresso, em sua maioria, situam-se nos espaços da ciência, da tecnologia, da diplomacia, e se fazem indispensáveis.”

Para corroborar o meu discurso, de que outras línguas não exercem mesmo poder sistêmico ao nosso idioma, as palavras de Domício Proença Filho, na mesma conferência, aduzem:

“O maior ou menor volume da presença estrangeira na língua vernácula vincula-se, portanto, à maior ou menor influência que a Cultura de um país possa exercer sobre a Cultura de outro. No caso do português, é importante que se diga, os empréstimos, de qualquer ordem, nunca chegaram a ameaçar-lhe, de fato, a integridade sistêmica. Isso é que me parece importante: A língua como um sistema, ou seja, um conjunto organizado. Se é um conjunto organizado, se faz de princípios organizatórios. Nesse território, palavra estrangeira nenhuma entrou.”

Um fato relevante, e por isso mesmo deve ser levado em consideração, é o uso da língua como instrumento de comunicação, de aferição de conhecimento e, sobretudo, de pesquisa. Estudo a língua portuguesa e minha prática docente é efetivada num componente curricular de Práticas de Leitura e Escrita no curso de Ciências e Tecnologias, na UFRN. Sei do que estou falando.

Para não mais me prolongar, quase louvei o seu argumento, ao afirmar que a nossa cultura e identidade devem ser preservadas, mas impossível não questionar: a cultura vernácula não pertence única e exclusivamente a Natal, logo, não se trata de cultura local, não nos aportamos em nenhum idioleto, estou certo? Outras indagações também me ocorrem: ora, se a palavra-chave é a cultura, onde se encontra o fomento à cultura local? Esse sim poderia ser alvo de um projeto de sua autoria. Os artesões – da palavra, das cênicas, das cores, ad infinitum – agradeceriam pormenorizadamente.

Há uma série exaustiva de exemplos que podem florear este e-mail, em defesa de uma liberdade de batismo dos prédios comerciais e residenciais. No entanto, as minhas palavras já podem alçar o seu voo objetivo: mostrar que a essência do seu projeto tende a ser vista como autoritária, descabida, incoerente e, sobretudo, inócua. Sinceramente, senhor vereador, até o seu nome não é genuinamente brasileiro. Do grego, significa “o protegido por Hércules”. Mas torcemos para que o deus grego fique a favor do povo que fala todas as línguas.

Atenciosamente,
Peterson Nogueira
Mestrando em Literatura Comparada pelo PPgEL, UFRN.

3 comentários:

Peterson Nogueira disse...

Essa carte é direcionada ao vereador Heráclito Noé que elaborou um projeto para traduzir os nomes dos prédios comerciais e residenciais. Pode? Ah, vereador, tá na hora de se preocupar com assuntos mais urgentes. O povo é mais urgente do que esses projetozinhos que não levam a lugar algum!

Daniel Pereira disse...

Realmente, já não sabemos, nós sociedade, o que está em vigor em realidade! Muita futilidade e pouca índole! Um absurdo!

Elegia de Abril disse...

Citando Oswald de Andrade, ou Osvaldo, em momento de descontração, mas de profunda sinseridade, sem fins academicistas: "o problema em questão não é ontológico, mas sim odontológico". É certo que devemos tomar cuidado com o produto final do consumo "antropofágico", mas sem deixar de fazê-lo. Ainda vivemos bons momentos de devoração cultural.

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