quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Brincando de boneca - parte III

No entanto, quando Alzira completou vinte e dois anos, casou-se com um forasteiro, e queria levar Conceição para viver com ela. Dona Glória não aprovava o casamento, pressentia que o homem, Álvaro, não tinha boas intenções e não permitiu a saída de Conceição. Ela estava certa, em menos de um mês, estavam separados e Alzira se prostituiu, para decepção da família, que insistia na sua volta para casa.
Fernando, sempre persistente, passou no vestibular de Medicina e ajudou os irmãos a subirem na vida. Tentou chamar Alzira para perto de si, mas ela não queria largar a vida mundana dos vícios e do sexo. Ela nunca prosperou.
Fernando se formou aos vinte e nove anos e logo que isso aconteceu, tirou a mãe dos empregos miseráveis que lhe usurpavam as forças, dona Glória tinha quarenta e oito anos, uma aparência de sessenta e não suportava mais as asperezas que os empregos lhe impunham. Tinha sofrido muito na vida difícil. Num natal, perguntada pelo filho sobre o presente que queria ganhar, foi enfática:
- Uma máquina de lavar ropa.
- Mamãe, eu te dou a máquina, mas quero que peça uma coisa pra senhora, uma roupa, sei lá, algo que sirva somente à senhora.
- Meu fio, eu não priciso di nada, além di saúde, que Deus já mi dá.
Os irmãos Lázaro e Moisés se formaram dois anos depois, juntos, em enfermagem e Francisco de Assis, que sofria de uma doença neural, morrera com problemas cardiovasculares, para profunda tristeza de dona Glória que lhe dedicara um amor cuidadoso durante toda a vida, na intenção de fazê-lo, sempre que lhe era possível, feliz. Conceição, cinco anos depois dos irmãos, formou-se em Direito; casou com um juiz e no ano seguinte teve um filho que o batizou de Fernando, em homenagem ao irmão que amava incondicionalmente.
Dona Glória conseguiu se aposentar aos sessenta anos, no mesmo dia em que Fernandinho completava dois. Foi à rua, na companhia do tio homenageado, fez compras e levou o presente para a criança que estava com os olhos brilhando com o tamanho da embalagem.
- Dá vovó, dá vovó.
Ao rasgar o papel, todos se surpreenderam com o presente. Era uma boneca. Ao enviarem olhares indagadores para dona Glória, ela respondeu plácida:
- Sempre tivi vontade di ter uma. A primera veiz que eu vi uma eu tinha uns cinco, seis ano e fiquei encantada co’os calunga. Demorei a intender que era brinquedo, assim como eu era na mão do meu patrão que do algodão me pôs na cana-de-açúcar, no abacaxi e me jogava pra onde quiria. Ói essas marca na minha mão – e mostrou cicatrizes que deixaram marcas brancas na pele – Sai de lá graças ao pai de ocêis.
- Mãe, isso já tem muito tempo, não vamos relembrar agora, está bem? – falou Conceição emocionada.
Entraram em casa para comerem um bolo de chocolate que Conceição mandara fazer. E, no lugar de usufruírem do momento do aniversário, dona Glória ficou contando a história de sua vida, sempre acompanhada ao adjetivo difícil e do substantivo exceção, marcas continuadamente presentes em sua vida, que se uniam para formar a sintaxe de sua história.
Daquele dia em diante, dona Glória passou a comprar bonecas para si, brincava sozinha ou na companhia do neto e sempre lastimava a falta de sua filha Alzira.
Alguns meses depois, com fortes tonturas e dores no corpo, dona Glória fora levada a um hospital para fazer exames. Levou uma boneca vestida de noiva para as consultas, nenhum dos filhos pensou em barrá-la.
- O que são essas manchas pretas que a senhora tem das mãos aos braços?
- Sei dizê não dotô, eu sempre tivi isso. Né sinal não?

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