quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Brincando de boneca

Quando Glória nasceu, a situação de sua família era deplorável. Canindé, seu pai, já estava velho e doente, mas continuava trabalhando nas terras do seu patrão, em especial na plantação de algodão onde fazia de tudo, do plantio ao descaroçar, ganhava pouquíssimo e o dinheiro não dava para sustentar satisfatoriamente os filhos e a esposa, mas agradecia a Deus todos os dias pelo emprego e pela comida, não se entregava às melancolias da vida e se sentia feliz. Glória era a quinta vida que punha no mundo, ele viu a esperança renascer quando irromperam as primeiras lágrimas do bebê franzino, que nascia sem nome, mas que, quando a parteira verificou o sexo, o suspiro da mãe a batizara.
O primeiro contato de Glória com a aspereza foi o toque das mãos de seu pai que pedira para segurá-la, mãos calejadas devido à árdua tarefa que empreendia.
- Ispero que ocê seje filiz, minha fia. Esse mundo de Deus é um bocado injusto. E ocê há de vingar!
Canindé tinha, segundo os médicos, um blastoma maligno na bexiga, que depois de algum tempo lhe deixara prostrado na cama. A recuperação era nula, pois a falta de recursos não admitia melhoras eficazes. Ele ainda conseguiu reter a vida dentro de si, vendo assim o primeiro ano de existência da última filha, morreu num domingo à tarde, quando todos estavam de folga de seus afazeres. A doença lhe esturricara a pele, assim como faz a seca à terra.
Abelardo, o dono das terras onde trabalhava seu Canindé, apesar de sua mesquinhez, deu ao morto um enterro digno e deixou a família residindo na mesma casa, mas alertou à viúva que os preços não mudariam. Alzira ficou desesperada, ela também trabalhava na roça, mas sabia que somente o seu salário seria insuficiente para sustentar os cinco filhos, ela chorava na labuta árdua e diária dos algodoeiros, tinha o corpo todo arranhado e as mãos feridas. Ela recorreu à única opção que tinha: colocar os filhos para trabalhar. Somente Glória não trabalhou imediatamente, era muito novinha, mas não demorou muito e lá estava ela ajudando no descaroçador onde ficavam as crianças menores, que iam também se sujar de branco. Em poucos meses, os filhos de Alzira haviam mudado de cor, estavam todos queimados do sol, assados, mas como estavam em convívio diariamente, ninguém conseguiu perceber diferença alguma.
Aos seis anos, Glória, como os irmãos, era precisa no manejo com facões, rápida no descaroçar e muito eficiente nas outras plantações que seu patrão possuía. Num dia, sem quê nem pra quê, acordou sem vontade de ir trabalhar e mesmo com a insistência da mãe a decisão parecia reinar absoluta. Dona Alzira falava da falta que fazia Canindé na criação dos filhos e contava a história da vida dos dois. Glória, sem maturidade para entender o que a mãe relatava, não demonstrava nenhuma alteração na vontade e continuava imóvel, sua mãe perdera a paciência e lhe levou à força, segurando o braço da menina aos berros, que cessou o seu choro quando, passando em frente à casa do patrão vira Terezinha, filha dele, brincando com bonecas. Glória nunca tinha visto uma e se encantou com as miniaturas de gente, todas arrumadinhas, coloridas, feitas de várias formas e materiais, plástico, borracha e a maioria feita artesanalmente, de pano, preenchida com uma ironia sarcástica, algodão que Glória penteava.
- Bora minina qui a hora tarda.

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