domingo, 6 de setembro de 2009

Elegia


“Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.”
Fagundes Varela, Cântico do calvário.


Ontem, pouco antes de dormir, minha mãe me chamou para falar de uma tragédia que havia circundado a vida de uma amiga nossa, seu marido distraíra-se na estrada e tal distração provocou um acidente. Seu filhinho de seis anos, completos dois dias antes, não resistiu à fratura craniana. Imediatamente perguntei pela mãe, nossa amiga. Ela tinha sobrevivido, quebrara o braço e tinha algumas escoriações pelo corpo e face. E o marido estava em coma. Lamentei profundamente a perda. Adoro crianças, e adorava-o também, acredito que uma criança é sempre um ótimo motivo para a felicidade de uma casa, com aquele menino não era diferente, ele era a alegria de sua casa, da casa dos familiares, todos gostavam dele, do seu sorriso apaixonante, do carisma que ele tinha.
Chorei, eu realmente senti a passagem daquela criança para a outra vida. Aprendi com um amigo que essa é a melhor maneira de se encarar a certeza que todos nós temos na vida: um dia não mais estaremos aqui onde estamos agora.
Não sou mau, nem pessimista, mas acredito que era melhor a mãe ter ido também e o pai não sair mais do coma. Eles sofreriam menos. Quando este pai sair do hospital, como será? A dor de saber que seu único filho nunca mais estará à sua espera para abraçá-lo, chamá-lo por “papai”, afinal, era a única pessoa que podia chamá-lo com devida propriedade. Entre o momento da alta do hospital até a descoberta da morte do filho, ele verá a esposa com os olhos cheios de lágrima – ela chorará durante toda a vida quando lembrar do filho –, ele pensará que é pura emoção por ter sobrevivido ao coma e pensará que somente ele sofreu com o acidente, com a batida feroz do carro contra o seu, ela não saberá como agir, como dizer tal desgraça e chorará mais, ele se assustará e perguntará pelo filho, ainda pensando que somente sua própria visão escureceu, somente o seu corpo foi lesionado com o choque automobilístico. Ela não parará de chorar nesse dia, terá um companheiro de lágrimas que saberá o peso desse líquido sobre a face, sobre a vida inteira. Isso tudo acontecerá em alguns instantes e quando ele enfim souber da fatalidade, chorará lágrimas ressentidas de saudade eterna, das dores gigantescas que tal fato proporciona. Lamentará ainda por não ter visto mais o seu pequenino, terá somente a lembrança do seu filho rindo e isso, no meio das contradições, será menos penoso, menos triste.
As dores da perda de um filho são indescritíveis. Sequer fui pai – acredito que não mais serei –, mas é uma certeza que qualquer pessoa pode ter, sobretudo se já tiver presenciado algo parecido, mas jamais será tão triste e trágico quanto à experiência real, vivida sob a própria pele. É algo que pela simples imaginação ninguém quer passar, claro. Vivi algo que jamais sairá da minha memória, quando fui ao sepultamento do filho de uma conhecida, as lágrimas derramadas pelos pais eram abundantes como... – metáfora alguma traduziria a realidade – entretanto, imaginem a abundância das águas da Foz do Iguaçu em plena cheia das cachoeiras, você terá um eufemismo das lágrimas daqueles pais. No momento mais crucial, a descida do caixão à cova, a mãe levantou as mãos para o céu e, sempre entre muitas lágrimas, agradeceu a Deus por ter concedido a felicidade de ter seu filho até o dia anterior. Foi impossível conter as lágrimas.
Agora, enquanto escrevo, tenho a certeza de que a nossa amiga chora sobre o pequeno ataúde, certamente branco, sobre o rosto do filho, um pouco ferido devido ao acidente, alisando os cabelos negros do filho, beijando sua testa, apertando suas mãozinhas pequenas, cruzadas num difícil momento, pedindo para lhe obedecer e levantar dali, clamando a Deus por um milagre. Os presentes sentirão a comoção, chorarão também, embora saibamos que nada, nenhuma palavra ou ação exterior reduzirá a dor perpétua. Na hora que tiver de sair o cortejo fúnebre, ela se agitará muito mais, gritará, apesar da tonalidade da sua voz baixa, pedirá a Deus para cuidar do seu pequenino indefeso. Chorará muito mais.
Ao voltar pra casa encontrará no caminho os vizinhos que gostavam do filho e brincavam com ele, já em casa verá as fotografias nos porta-retratos, os brinquedos, os espaços onde ele costumava estar, brincar, a cadeira da mesa em que ele preferia sentar, os talheres, as roupas, a toalha do último banho, a cama, o quarto, sentirá uma saudade dolorosa e contínua, “a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu” (Chico Buarque). Tudo será insuportavelmente triste. A saudade será eterna. A dor lancinante será diária, será a toda hora, a todo segundo. Formulará hipóteses sobre uma suposta evitação da desgraça, da não-saída naquele dia, naquele horário. Outras pessoas da família também se encherão de culpa, criarão motivos para culparem a si próprias. Sem atentar que não existe culpa, nem sequer culpados.
Não existe nenhuma perda mais triste do que essa. Não existem cenas mais penosas do que essas. Não existe dor mais profundamente cortante do que essa. Não existe dificuldade mais sobre-humana do que conjugar a vida do seu filho no pretérito perfeito. Não existe.

Peterson Nogueira
06Fev06

3 comentários:

Renata Freire disse...

A gente não se dá conta, mas um dia chega a nossa hora. E pensar que também tem tanta gente no mundo querendo se suicidar... A vida é bela, mas as pessoas não são tão belas quanto ela. Fazer o que, né...
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Passa no meu blog novo: www.yoshi-.zip.net =D

Isabela Gonzaga disse...

Não é fácil não! Mais creio eu, que pessoas como esse garotinho têm seu "cargo" de anjinho reservado no céu, assim como as pessoas de bom coração que viveram em função do proximo! O mundo hoje está tão cruel que Deus recolhe (digamos assim) os seus anjos para ajuda-lo lá em cima, com os problemas aqui de baixo.. pena que isso custe uma dor Impar dos pais.. :/ Eu sei tbm que a ferida não sara, mais o velho e "amigo" tempo, tratará de amenizar a dor ;)
Lindo Texto!

Unknown disse...

Triste e pura realidade. Me pergunto porque ter pessoas que vamos perder e nunca mais ter?
Acho que por isso que temos que aproveitar as pessoas dano o nosso melhor pra elas.
Um texto pra refletir, comovente.

Bom Perteson mto bom Peterson :))

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