quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O "ídion" e o "idiotes" - Leandro Konder


Quando duas pessoas querem dialogar, duas condições prévias são imprescindíveis: 1) que elas sejam indivíduos diferentes, e 2) que elas tenham alguma coisa em comum.

Se não houver nenhuma diferença significativa, se as duas disserem exatamente a mesma coisa, cada uma delas repetindo o que a outra acabou de dizer, teremos não um diálogo, mas um monólogo a duas vozes.

Por outro lado, se os dois parceiros do diálogo forem tão completamente diferentes que não tenham sequer um ponto de encontro e nem mesmo consigam falar a mesma língua, o diálogo se torna inviável.

O indivíduo é o ser singular, tem uma identidade que o distingue de todos os outros, uma personalidade própria (é o que os antigos gregos chamavam de ídion). No entanto, esse ídion existe em um constante intercâmbio com os outros, é formado pela sociedade, depende do grupo. Leva um tempão para aprender a andar, a falar; e muito mais tempo ainda para aprender a lutar pela vida, a sobreviver por conta própria. Existe, portanto, em comunidade (o que os antigos gregos chamavam de koinonia).

Nas atuais condições históricas, a importância da autonomia individual é sublinhada pela onda de individualismo que se nota na cultura dita ''pós-moderna''. Com boas razões, as pessoas repelem a pressão que as tenta anexar a coletividades estruturadas de forma sufocante.

Querendo ou não, pertencemos todos a uma vasta comunidade: o gênero humano. Mas a humanidade é grande demais, não conseguimos enxergá-la. Recorremos, então, a comunidades menores, que substituem a espécie humana. Uns se integram (ou entregam?) em partidos políticos, outros a seitas religiosas, muitos se contentam em pertencer a um clube de futebol ou a uma escola de samba, alguns se definem como sócios de um clube ou membros de uma corporação profissional. Isso pode ser bom ou pode ser ruim, dependendo do espírito com que o sujeito vive sua pertinência à ''pequena comunidade'': com espaço para a tolerância, o diálogo e o humor.

Mas há gente que se recusa a participar de qualquer koinonia e insiste em ser apenas um indivíduo isolado. O preço pago por essa opção individualista drástica costuma ser alto. O sujeito posto em estado de solidão pode pensar que está desenvolvendo uma reflexão original, profunda, enriquecedora, no entanto pode estar somente emburrecendo, por falta de interlocutores. Vale a pena lembrarmos que os antigos gregos já alertavam para esse risco: no idioma deles, o superlativo de ídion (singular) era idiotes.

O indivíduo singular é formado socialmente, ele se individualiza na relação com os outros. Sua singularidade (originalidade ?) se desenvolve com base na incorporação crítica das experiências alheias, num movimento incessante de ir ao outro para crescer. O idiotes é o sujeito que, instalado em si mesmo, se sente dispensado de qualquer esforço de auto-superação.

A rigor, se trata de alguém que não suporta o diálogo com o outro, já que o outro, o interlocutor que pensa diferente, lhe parecerá sempre o agente de um desacato, a encarnação de um desaforo, um delinqüente, que merece sofrer medidas policiais.

Dispor-se ao diálogo, tentar falar para o outro, já é uma opção promissora, que pode ter preciosas implicações humanistas e democráticas. Para prosseguir no caminho dialógico, o sujeito precisa aprimorar sua capacidade de argumentar ad hominem, quer dizer, sua capacidade de falar de modo razoável, em termos que o seu interlocutor - com base no que já sabe - possa entender.

Debruçando-se autocriticamente sobre si mesmo, o sujeito que se dispõe a trilhar o caminho do diálogo precisa tentar reexaminar sua inserção em grupos, coletividades, comunidades que eventualmente lhe servem como substitutas da espécie humana (dentro de certos limites, é claro).

Precisa verificar, no diálogo, se tem sido e continua a ser um bom companheiro de partido, um correligionário maduro e consciencioso, um parceiro leal e correto, um colega bem-educado e cordial, ou se às vezes tropeça em atitudes intolerantes e fanáticas, em azedumes ou mesquinharias, cultivando mal-entendidos em vez de contribuir para proporcionar esclarecimentos.

Precisa, também, de tempos em tempos, observar criticamente a coletividade em que está inserido, para ver se ela está proporcionando aos seus integrantes possibilidades concretas de eles combinarem suas respectivas singularidades com meios concretos de uma inserção mais efetiva - mais universal! - no movimento social.

Essa inserção é fundamental. Depois de ter sido formado pela sociedade, o indivíduo passa a se orientar livremente, a fazer escolhas pelas quais é responsável, e é desafiado a participar ativamente da transformação da sociedade que o formou. As associações que até certo ponto funcionam como substitutas do gênero humano devem oferecer a seus membros possibilidades concretas de pensarem e agirem sem estreitezas ideológicas, na condição de cidadãos do mundo, de representantes da humanidade.

Se não fazem isso, essas associações podem atrapalhar a formação de uma consciência humanista e democrática. Se, contudo, se abrem para o convívio jovial com a ampla diversidade da condição humana, elas ajudam muito a fortalecer o espírito da democracia. E mantêm vivo o espírito do humanismo.

1 comentários:

Unknown disse...

Olha, gostaria de declarar aqui a minha admiração ao quanto escrito nesta composição, de fato é visível a fluência da compreensão e pensamento textual. Talvez a melhor e mais genérica definição do assunto que já li.
Um assunto de alta importância mas contido na ignorância de muitos idiotas.

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